O meio-dia e as ciências humanas


As reflexões dos Padres do Deserto acerca do demônio do meio-dia não ficaram num passado distante. Os escritores e as ciências humanas dos nossos tempos desenvolveram todo um pensamento, associando o demônio do meio-dia às crises pelas quais enfrentam muitas pessoas.

O escritor americano, Andrew Solomon, em sua obra “o demônio do meio-dia: uma anatomia da depressão” é um exemplo da atualização, na modernidade, do que os Padres do deserto chamavam de o demônio do meio-dia. Em sua obra, Andrew, a partir de sua experiência pessoal trata sobre o mal da depressão, conhecida como a doença do século. A depressão, como sugere o título do seu livro, é associada pelo autor como “o demônio do meio-dia”. O modo como Andrew descreve a depressão aponta as mesmas características da acídia, o demônio do meio-dia, do qual se referem os Padres do Deserto. Afirma o autor:

A depressão é a imperfeição no amor. Para podermos amar, temos que ser criaturas capazes de se desesperar ante as perdas, e a depressão é o mecanismo desse desespero. Quando ela chega, degrada o eu da pessoa e finalmente eclipsa sua capacidade de dar ou receber afeição. É a solidão dentro de nós que se torna manifesta, e destrói não só a conexão com os outros, mas também a capacidade de estar apaziaguadamente apenas consigo mesmo. [...] Na depressão, a falta de significado de cada empreendimento e de cada emoção, a falta de significado da própria vida se tornam evidentes. O único sentimento nesse estado despido de amor é a insignificância (SOLOMON, 2002, p.15)

A depressão é o demônio do meio-dias dos nossos dias. Ela tem atingindo as mais variadas classes sociais, provocando nos dominados um “azedume” pela vida. No depressivo, a pulsão da vida acaba dando lugar ao desejo pela morte. Sua vida torna-se uma noite escura na claridade do meio-dia.

Uma leitura moderna diz que o demônio do meio-dia o é um bicho do inferno, mas é um sofrimento insidioso, específico de uma época em que faltam cantos escuros.
Ele é nossa própria tristeza, a depressã
o e o tédio produzidos por um mundo com poucas sombras e poucos mistérios (CALLIGARIS, 2010).

A psicanálise e psicologia interpretam o demônio do meio-dia como um estado de crise em que o homem passa na metade de sua vida (40 anos). A “crise da meia idade” faz com o indivíduo passe a perguntar sobre si mesmo e pelo sentido de sua vida. Para Jung a crise da meia idade se dá na segunda fase do processo de individuação, ou seja, quando uma pessoa encontra o seu si mesmo (self) que o distingue dos demais.

Jung assim define a individuação:

Individuação significa tornar-se um ser único, na medida que por “individualidade” entendemos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando que nos tornamos nosso próprio Self. Podemos traduzir individuação como ‘tornar-se si mesmo’ ou ‘o realizar-se do si mesmo’ (Apud: SAINAI, 2000, p.74)

Segundo os comentadores de Jung para o mesmo o que determina a crise da meia idade é o conflito. Para Jung “o conflito aparentemente insuportável é prova de que sua vida está correta. Uma vida sem contradição interior é apenas meia vida ou então uma vida no Além, destinada apenas aos anjos” (Apud: SHARP, 1988, p.14).

Na sua crise da meia-idade, o homem desce em si mesmo, conhece a sua sombra interior, todos os sentimentos vêem á tona e suas certezas são postas em questão.

Na meia-idade, o retrato de Dorian Gray[1] sai do armário. Com ele saem todos os demônios relegados para a sombra durante a primeira parte da nossa vida. Sentimentos proibidos de impotência e raiva; medos secretos de não sermos atraentes e de sermos rejeitados; fantasias encobertas de desejos sexuais; devaneios privados imbuídos de criatividade; perguntas não respondidas sobre o significado e o propósito das coisas. É todo um mundo de interrogações que nos assalta e nos persegue, até que nos voltamos para encarar a fera de frente (A SOMBRA)

A descoberta da sombra é positiva, pois permite conhecer a si mesmo e contribui para que possamos encontrar a unificação consigo mesmo, com o outro e com Deus. Segundo Enrique Martinez, em sua obra “A face oculta”,

embora doloroso, o encontro com a própria sombra é uma graça, um dom. Porque graças a ela avançaremos na verdade e na luz sobre nós mesmos, e, em última análise, em amor e unidade com todos. Podemos vê-la como uma ajuda amistosa, e como tal, dar-lhes a boas-vindas (2008, p.17).

Conhecer a sombra que existe dentro de nós mesmos, e que muitas vez nos impede brilharmos como o sol do meio-dia, constitui um caminho de humanização. Afirma Martinez:

A sombra nos humaniza e, ao pôr-nos diante de nossas próprias limitações, faz-nos mais humildes e nos liberta. Daí decorre que o trabalho com ela seja fonte de liberdade e de delicado respeito pelos outros. Por tudo isso, a sombra é um guia necessário ao caminho de toda a pessoa que deseja crescer na verdade e na liberdade. Para sentir-nos concretos, temos de passar pelo lugar obscuro que há em nosso interior e fazer as pazes com as trevas se queremos chegar a totalidade (ibdem, 2008 p.17).

A totalidade da qual trata Martinez, pode entendida numa linguagem cristã, como a paz do espírito, harmonia interior. Até chegarmos a essa plenitude espiritual se faz necessário fazer um longo e ardoroso encontro consigo mesmo para que possamos conhecer, assumir, trabalhar e redimir todo o que envolve o nosso mundo interior. A paz interior é fruto de um duro combate com os nossos demônios interiores no meio-dia da nossa existência. Quem foge desse combate continuará sendo movido sombra do seu individualismo, do egoísmo, impossibilitará contemplar sol da verdade sobre si mesmo.


[1] Dorian Gray é o personagem do romance inglês, O Retrato de Dorian Gray, do escritor Oscar Wilde. Dorian era um rapaz de uma beleza exuberante. Seu amigo, Basil Hallward fez uma pintura belíssima de Dorian. Ao contemplar o seu retrato, Dorian deseja viver sempre jovem e diz: “Eu ficaria velho, aniquilado, hediondo! ... Essa pintura continuará sempre fresca. Nuca mais será vista mais velha do que hoje, neste dia de junho...Ah! Se fosse possível mudar os destinos; se fosse eu quem devesse conservar-me novo e se essa pintura pudesse envelhecer! Por isso eu daria tudo!...Não há nada no mundo que eu não desse... Até minha alma!...” (WILDE, 2006, pp.64-65). Por trás de sua beleza escondia uma personalidade egoísta e má. Toda a sua maldade refletia no quadro, que a cada ação sua mostrava o mostro que ele se tornara.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bem. Tenho só pena de não saber as obras referidas(por ex do Jung) porque precisava muito de aprofundar este tema