A NARRATIVA DA PAIXÃO DE CRISTO NO QUARTO EVANGELHO


A narrativa da Paixão e Morte de Jesus se encontra nos quatro Evangelhos. Porém, cada um traz elementos próprios. Diferente dos Evangelhos Sinóticos, João apresenta elementos peculiares. O mesmo apresenta um Jesus dramático em sua hora final (cf. Jo 13,1). Para João, Jesus não é uma vítima, mas alguém que escolhe livremente oferecer a sua vida (cf. Jo 10,17-18) (BROWN, 1988). O Jesus apresentado por João na sua hora final, portanto, na sua Paixão e Morte, é consciente:

Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar de mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim. Durante a ceia, quando já o diabo já pusera no coração de Judas Iscariotes, filho de Simão, o projeto de entregá-lo, sabendo que o Pai tudo pusera em suas mãos e que ele viera de Deus e a Deus voltara, levanta-se da mesa, depõe o manto e, tomando uma toalha, cinge-se com ela (Jo 13,1-4) (grifos nossos).

O verbo oida (sabendo) usado por João indica a plena consciência daquilo que se faz. “Esta consciência, como comenta Bortolini (2007, p. 83), está associada à hora de Jesus, que culmina com a morte na cruz. O que ele vai fazer, não o fará arrastado pelas circunstâncias, mas consciente de que abre o caminho de acesso ao Pai”.

Um dado importante da narrativa de João sobre a Paixão é o destaque que ele dá ao jardim. Em João, a Paixão tem seu início e término no jardim. Vejamos os dois textos bíblicos que tratam sobre isso:

Tendo dito isso, Jesus foi com seus discípulos para o outro lado da torrente do Cedron. Havia ali um jardim, onde Jesus entrou com seus discípulos (Jo 18,1). Havia um jardim, no lugar onde ele fora crucificado e, no jardim, um sepulcro novo, no qual ninguém fora ainda colocado (Jo 19,41) (grifos nossos).

Não é por acaso que João destaca o jardim. Trata-se de uma alusão ao jardim do Éden. Nele, o velho Adão rejeita o projeto de Deus para si e se depara com a morte. Jesus, o novo Adão, acolhe o projeto de Deus e o assume até as últimas conseqüências oferecendo a sua vida para que pudéssemos ter vida plena. No antigo jardim, o homem fecha as portas do paraíso. No novo jardim, as portas do céu são reabertas por Jesus.

O relato da Paixão joanino se diferencia ainda dos Evangelhos Sinóticos por ser o único a usar a expressão “hora de Jesus”. Encontramos referencias a mesma no milagre das bodas de Caná (cf. Jo 2,4), no discurso de Jesus no templo (cf. Jo 7,30; 8,20), no seu anúncio sobre sua morte (cf. Jo 12, 23.27), na última ceia (cf. Jo 13,1) e na oração sacerdotal de Jesus (cf. Jo 17,1).

A “hora” de Jesus indica a sua glorificação, de seu retorno ao Pai. Neste sentido, para João a morte de Jesus na cruz não tem caráter negativo, não significa fracasso, derrota, mas, pelo contrário, em sua morte se manifesta a glória, a vitória. Para João é necessário que o Filho do homem seja elevado sobre a cruz (cf. Jo 3,14). Sua elevação é o início da manifestação de sua glória (cf. Jo 12, 23. 28-29), é vitória sobre o mau: “É agora o julgamento deste mundo, agora o príncipe deste mundo será lançado abaixo, e quando eu for elevado da terra atrairei todos a mim” (Jo 12,31-32). A “hora” de Jesus tornou-se também a nossa, pois, por meio da sua Paixão, Morte e Ressurreição todos nós fomos agraciados com a salvação.

Com relação ao episódio da prisão de Jesus (cf. Jo 18,1-12), João mostra que Jesus vai ao encontro de Judas e não é pego de surpresa como narra Marcos (14,43). Jesus não fica a espera rezando para que fosse afastado o seu cálice como atesta a tradição sinótica (cf. Mt 26,36-46), mas pelo contrário, em João Jesus está pronto para receber o cálice que o Pai lhe deu (cf. Jo 18,11). O Jesus joanino está decidido a assumir até as últimas conseqüências sua missão: “Minha alma está agora conturbada. Que direi? Pai, salva-me desta hora? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim” (Jo 12,27).

O Jesus joanino não se encontra inclinado, não dobra os joelhos como em Lucas (22,41), não se prostra com o rosto em terra em oração como em Mateus (26,39), não cai por terra como em Marcos (Mc 14,35) ele permanece de pé, pois é Deus.

Se deve haver prostração no solo do jardim, este é o destino não de Jesus, mas dos soldados romanos e dos policiais judeus que vieram prendê-lo. Estes representantes do poder político, civil e religioso são abatidos quando Jesus usa o seu nome ‘Eu sou’ (18,6), mostrando ao leitor, de modo literal, que ninguém pode arrebatar a vida de Jesus a não ser que ele o permita (10,18) (BROWN, 1998, p. 68-69).

O julgamento de Jesus e a negação de Pedro (cf. Jo 18,13-27) são narrados por João diferente dos Evangelhos Sinóticos. Segundo o teólogo Brown (1998), na narrativa joanina, não há um procedimento formal diante de Caifás, mas um interrogatório diante de Anás para saber se Jesus admite algo de revolucionário em seu movimento ou ensinamentos.

Neste interrogatório, um Jesus absolutamente autoconfiante apresenta-se a Anás (18,20-21), de modo que seus captores são responsabilizados por injuriá-lo (18,22). O interrogatório deixa Anás, e não Jesus, embaraçado e sem respostas às perguntas (18,23) (BROWN, 1998, p. 69).

João não menciona nada a respeito do processo judaico, pois o mesmo já se encontra em todo o seu evangelho, desde o início quando os judeus enviam sacerdotes e levitas para interrogar quem era Jesus (cf. Jo 1,19), até a decisão das autoridades judaicas de matá-lo (Jo 11,49-53).

Quanto à negação de Pedro, João apresenta de modo completo o drama do apóstolo. João o identifica como um dos que cortaram a orelha do soldado (18,10), faz referência às simultâneas negações de Pedro e da autodefesa de Jesus, como ainda é o único a mencionar a presença de “outro discípulo” (Jo 18,15), cuja tradição o identifica como João, filho de Zebedeu. Sobre esse discípulo e sua relação com o apóstolo Pedro, comenta Brown:

Em cada cena, ele é introduzido quase como um contraste a Simão Pedro, a testemunha apostólica mais conhecida pela Igreja em geral; e, em cada cena, o discípulo amado salienta-se mais favoravelmente do que Pedro. Ele é sempre mais rápido ao ver, ao compreender e em acreditar, precisamente porque tem a primazia no amor de Jesus, que é uma marca da verdadeira condição de discípulo. Assim, o quarto evangelista conta-nos que seu Evangelho tem por trás uma autoridade preeminente e digna de confiança, uma mensagem que significaria talvez uma resposta aos outros cristãos, escandalizados pela exclusividade desta tradição comunitária sobre Jesus, tão marcadamente diferente da tradição sinótica, baseada em Marcos, que popularmente considerava Pedro como sua autoridade apostólica (BROWN, 1998, p. 70-71).

Sobre a presença de Jesus no tribunal romano (cf. Jo 18,28ss) convém destacar o foco que João dá ao seu comportamento. Em Marcos (15,5) Jesus silencia diante o interrogatório de Pilatos. João, ao contrário, apresenta um Jesus eloqüente que responde as falsas acusações e aos questionamentos dos seus opositores (cf. Jo 19,11) que assume o título de “Rei dos judeus” e testemunha a verdade (cf. Jo 18,37).

Tão eloqüente e seguro de si mesmo é Jesus no quarto Evangelho, que raramente podemos falar do julgamento de Pilatos; ao contrario, esse é colocado em julgamento para ver se era um ‘homem da verdade’. Pilatos pode pensar que tem poder para julgar Jesus, mas este lhe diz calmamente que ele não tem uma autoridade independente (19,10-11). Não é Jesus que teme Pilatos; é Pilatos quem tem medo de Jesus, o Filho de Deus (19,7-8) (BROWN, 199, p. 72).

As narrativas segundo João sobre a crucifixão, morte e sepultamento de Jesus (cf. Jo 19,16b-42) têm também elementos que diferem dos Evangelhos Sinóticos. João não menciona Simão de Cirene que, conforme os sinóticos, foi obrigado a carregar a cruz de Jesus (cf. Mt 27,32; Mc 15,21; Lc 23,26). É Jesus mesmo que carrega a sua cruz até o Gólgota (cf. Jo 19,17). Segundo Benoit (1975), o fato de João não ter mencionado Simão carregando a cruz não significa que o fato não existiu, mas apenas optou por omitir para combater alguns pensamentos heréticos que ventilavam no cristianismo primitivo.

João terá querido combater uma heresia nascida em seu tempo, a heresia doceta. O docetismo - que vem do grego dokein, ‘aparentar’ – pretende que no momento decisivo de seu sofrimento Jesus se eclipsou e outro tomou o seu lugar. Segundo tal heresia, Jesus não sofreu na cruz, mas um outro o substituiu, de modo que Jesus só ‘aparentou’ sofrer e morrer. João que conhecia esta heresia responde: Jesus carregou ele próprio sua cruz; rejeita assim o erro do docetismo e não o fato de que Simão de Cirene tenha ajudado o Senhor (BENOIT, 1975, p. 190-191).

Sobre as diferenças entre a narrativa joanina e a dos Evangelhos Sinóticos importa mencionar ainda a cena da divisão das vestes de Jesus. Os Sinóticos ao descreverem o relato (cf. Mt 27,35; Mc 15,24; Lc 23,34), não citam o salmo 22, 19. No entanto, João faz uma alusão explícita, mostrando que a repartição das vestes de Jesus faz parte do cumprimento das profecias do Antigo Testamento acerca do Messias. Justifica o evangelista João: “Isso a fim de se cumprir a Escritura que diz: repartiram entre si minhas roupas e sortearam minha veste” (19,24).

João faz questão de mencionar que a túnica de Jesus não foi rasgada, mas dividida. Tal explicitação tem rico significado. No entanto, é difícil saber qual a intenção de João, embora muitos tentarem explicar.

A túnica sem costura fez, algumas vezes, pensar na Igreja una, que não deve ser dividida. Mas este pensamento é de época posterior, aparece com são Cipriano quando a unidade da Igreja está ameaçada. Embora haja aí uma bela explicação teológica, não é certo que João tenha pensado nisso. O apóstolo terá querido fazer alusão à veste de José, uma túnica tecida com mangas, que seus irmãos embebem no sangue para que Jacó o julgue morto (Gên 37,23-33)? ou pensa então na túnica do Sumo Sacerdote, que era, dizem, de uma só peça e que Filão compara ao mundo com os seus quatro elementos? Será a veste do Logos, que estabelece a unidade do mundo? É de se recear que, procurando simbolismos muito distantes, ultrapassaremos as intenções de João (BENOIT, 1975, p. 201-202).

A túnica sem costura usada por Jesus, segundo alguns teólogos, significa que João não queria apenas apresentar Jesus como rei, mas como sacerdote (BROWN, 1998).

Na narrativa da crucificação joanina, é destacada a presença das mulheres, inclusive a mãe de Jesus que estava ao pé da cruz junto com o apóstolo João (cf. Jo 19,25). Porém, para Mateus (27,55) e Marcos (15,40) as mulheres estavam distantes, “olhando de longe”, e nenhum dos apóstolos estava presente, pois todos tinham fugido e abandonado a Jesus (cf. Mc 14,50).

As últimas palavras de Jesus na cruz, no Quarto Evangelho, também se diferem das tradições de Mateus e de Marcos. Em João Jesus diz: “Tenho sede” (19,28) e, “está consumado” (19,30). A cena apresentada por João é de calmaria. Com isso, o evangelista quis apresentar Jesus como aquele que tinha controle sobre seu próprio destino. O Jesus apresentado por João não se desespera, não demonstra a sua fraqueza e a sua angústia, como em Mateus e Marcos. Estes apresentam um Jesus que não se esquiva de expressar seus sentimentos de angústia. O Jesus apresentado por Mateus e por Marcos faz ecoar seu grito de angústia: “Eli, Eli, lamá sabachtháni?, isto é: Deus meu, Deus meu, por que me abandonastes?” (Mt 27,46; cf. Mc 15,34). Sobre esse grito de Jesus, significativos sãos os comentários de Benoit:

Jesus, que representa todos os homens sente-se abandonado de Deus, ele vai voluntariamente até o aniquilamento, até o sofrimento total; diante de Deus, sente-se coberto do pecado do mundo e daí que vem esta terrível angústia. Deus o abandonou às mãos dos pecadores, dos romanos e dos judeus. Não temamos reconhecer a angústia do Senhor: não se deve dar a estes sofrimentos de Cristo uma espécie de aparência enganadora, como se não sofresse realmente, pois sabe tudo o que vai acontecer. É mister não esvaziar este mistério profundo de sua substância, procurando suavizá-lo. Jesus, Filho de Deus, viveu como homem no sentido total da palavra, e quis experimentar a morte humana naquilo que possui de mais trágico (BENOIT, 1975, p. 223).

Com relação as últimas palavras de Jesus na cruz faremos uma exposição posteriormente. Interessa-nos neste momento fazer uma comparação entre as narrativas de Mateus e Marcos com o relato de João. Mateus e Marcos colocam na boca de Jesus o início do salmo 22,2. João ao mencionar o grito de sede de Jesus, pensa no salmo 69, 22 que diz: “Como alimento deram-me fel, e na minha sede serviram-me vinagre”. “Para o quarto evangelista, até mesmo o grito mais humano de: “Tenho sede!” (19,28) pode ser colocado no contexto do soberano controle de Jesus sobre seu próprio destino” (BROWN, 1998, p. 77).

A entrega do espírito de Jesus em João é também rica de significados teológicos. Diz São João: “Quando Jesus tomou o vinagre, disse Está consumado! E, inclinando a cabeça, entregou o espírito” (19,30). Marcos não faz referência ao espírito, simplesmente diz que Jesus expirou (cf. Mc 15,37). Esses detalhes demonstram que existem diferenças teológicas entre João e Marcos. Para João a entrega do Espírito Santo se deu com sua morte na cruz e na ressurreição, quando soprou sobre os apóstolos o Espírito Santo (20,22). Segundo o teólogo Brown,

João pode está sugerindo, por meio de uma simbólica antecipação, que Jesus entregou seu Espírito a seus seguidores ao pé da cruz, em particular aos dois expressamente citados (a mãe e o discípulo amado), idealizados pela comunidade joanina como seus antecedentes (BROWN, 1998, p. 78)

Os Evangelhos Sinóticos fazem referência aos vários sinais que se manifestaram com a morte de Jesus, querendo assim exprimir a dimensão extraordinária do acontecimento. Os fenômenos que acompanharam a morte de Jesus foram: Trevas sobre a terra (cf. Mt 27,45), rasgo do véu do santuário e tremor da terra (cf. Mt 27,51), ressurreição dos mortos (cf. Mt 27,52) e confissão do centurião romano reconhecendo Jesus como Filho de Deus (cf. Mt 27,54)[1].

João, diferente dos Sinóticos, não se preocupa em mencionar os sinais externos da natureza, mas destaca o sinal no próprio corpo de Jesus: “mas um dos soldados traspassou-lhe o lado com a lança e imediatamente saiu sangue e água” (19,34). O sangue nos lembra a dimensão carnal (humanidade) e a água a dimensão espiritual (divindade). Em João a água é comparada ao Espírito: “aquele que crê em mim! conforme a palavra da Escritura: De seu seio jorrarão rios de água viva. Ele falava do Espírito que deviam receber aqueles que haviam crido nele, pois não havia ainda Espírito porque Jesus ainda não fora glorificado” (7,38-39). Sendo para João a cruz o lugar da glorificação de Jesus, essa profecia se cumpre, “pois a mistura de sangue e água é o sinal de que Jesus passou desse mundo para o Pai e foi glorificado (12,23;13,1)” (BROWN, 1998, p. 78).

O sangue e a água jorrados do corpo do Crucificado foram interpretados pelos Padres da Igreja como o surgimento dos dois sacramentos da Iniciação Cristã: Batismo e Eucaristia, e desses dois sacramentos, o nascimento da Igreja, a nova Eva, que sai do lado do novo Adão. Em uma de suas catequeses, São João Crisóstomo (sec. IV), assim explica o significado do sangue e da água que brotaram do lado de Jesus:

[...] a água, como símbolo do batismo; o sangue, como símbolo da eucaristia. O soldado, transpassando-lhe o lado, abriu uma brecha na parede do templo santo, e eu, encontrando um enorme tesouro, alegro-me por ter achado riquezas extraordinárias. Assim aconteceu com este cordeiro. Os judeus mataram um cordeiro e eu recebi o fruto do sacrifício. [...] Não quero, querido ouvinte, que trates com superficialidade o segredo de tão grande mistério. Falta-me ainda explicar-te outro significado místico e profundo. Disse que esta água e este sangue são símbolos do batismo e da eucaristia. Foi destes sacramentos que nasceu a santa Igreja, pelo banho da regeneração e pela renovação do Espírito Santo, isto é, pelo batismo e pela eucaristia que brotaram do lado de Cristo. Pois Cristo formou a Igreja de seu lado traspassado, assim como do lado de Adão foi formada Eva, sua esposa (CRISÓSTOMO, In: LITURGIA DAS HORAS, v.II, 1995, p. 416).

A interpretação de São João Crisóstomo evidencia não somente o significado da Morte e do sangue e da água, mas também a graça que brota da cruz, ou seja, através dela fomos presenteados com suas riquezas e frutos para a nossa salvação. Essas “riquezas extraordinárias” e o “fruto do sacrifício” dos quais se refere Crisóstomo são os meios oferecidos por Deus para a nossa santificação. Os sacramentos do Batismo e da Eucaristia são canais onde passam os tesouros, as riquezas e os frutos da graça de Deus que purifica, santifica e salva o homem.

Retomando a nossa análise acerca da narrativa da Paixão e Morte de Jesus segundo João, convém destacar o sepultamento de Jesus. João é o único a mencionar o aparecimento de Nicodemos na cena.

‘Nicodemos, aquele que anteriormente procurava Jesus à noite, também veio, trazendo cerca de cem libras de uma mistura de mirra e aloés’ (19,39). Nicodemos, que antes tinha tido um encontro com Jesus, mas não tinha aderido totalmente a proposta de Jesus (Jo 3,1-21), agora, tem a coragem de mostrar seu interesse pela pessoa de Jesus. As palavras de Jesus estão começando a tornar-se verdadeiras: ‘Quando eu for elevado da terra, atrairei todos os homens a mim’ (12,32) (BROWN, 1998, p. 79).

Os Evangelhos Sinóticos não fazem referência aos perfumes usados para ungir o corpo de Jesus. João ao destacar uma quantidade enorme de perfume, cerca de 32 quilos, tinha como propósito evidenciar o aspecto da realeza de Jesus. Somente no sepultamento dos reis se usava tamanha quantidade de perfumes. Na Paixão segundo João, Jesus é apresentado como verdadeiro rei. A unção de Nicodemos nos lembra o que diz o salmista a respeito das núpcias do rei-Messias com a humanidade:

Teu trono é de Deus, para sempre e eternamente! O centro do teu reino é cetro de retidão! Amas a justiça e odeias a impiedade. Eis por que Deus, o teu Deus, te ungiu com óleo da alegria, como nenhum dos teus companheiros; mirra e aloés perfumaram tuas vestes (Sl 45,8-9a).

Após a análise da narrativa acerca da Paixão e Morte de Jesus no Quarto Evangelho, podemos chegar a seguinte conclusão: A Paixão de Cristo joanina é diferente dos Evangelhos Sinóticos em vários aspectos. O Jesus apresentado por Mateus e Marcos se sente abandonado (cf. Mt 27,46; Mc 15,34); o retrato que Lucas pinta é de um Jesus que se preocupa com os que choram (cf. 23,27-31) e perdoa os seus opositores (cf. 23,34). Para João, o Crucificado não é um fracassado, derrotado, mas de um rei soberano vitorioso cujo mal não tem poder sobre ele. Todos os retratos de Jesus pintados pelos evangelistas são significativos, como atesta Brown:

Para escolher um retrato de Jesus crucificado, de modo a excluir os outros ou a harmonizar todos os retratos evangélicos em um só, teríamos de destruir a cruz de muito de seu significado. É importante que alguns sejam capazes de ver a cabeça pendente de tristeza, enquanto outros observem os braços abertos para perdoar, e outros ainda percebam na tabuleta pregada sobre sua cruz a proclamação de um rei soberano (BROWN, 1998, p. 85).

A cruz em João não é símbolo de maldição, mas trono onde Jesus reina. Ao olhar para a cruz o homem de todos os tempos pode reconhecer e escrever na tabuleta do seu coração que Jesus é o rei de sua vida.



[1] A respeito dos fenômenos extraordinários que são mencionados pelos Evangelhos Sinóticos, convém levarmos em consideração o comentário do teólogo Benoit. Para o mesmo, por trás desses fenômenos havia uma intenção teológica. “De fato é uma maneira comum na Bíblia exprimir o Dia de Javé, o grande dia escatológico, por fenômenos cósmicos, por abalos do mundo, comportando trevas e perturbações nos astros. Aqui intervém uma figuração oriental que emprega clichês, sem tomá-los literalmente, para exprimir uma realidade espiritual (1975, p. 228). Segundo as narrativas dos profetas, o Dia de Javé é marcado por vários acontecimentos. Vejamos algumas passagens bíblicas: “Um dia de ira, aquele dia! Dia de angústia e de tribulação, dia de devastação e de destruição, dia de trevas e escuridão, dia de nuvens e de negrume” (Sf 1,15); “Diante dele a terra se comove, os céus tremem, o sol e a lua escurecem e as estrelas perdem o seu brilho!” (Jl 2,10); “Acontecerá naquele dia, - oráculo do Senhor Iahweh – que eu farei o sol declinar em pleno meio-dia e escurecerei a terra em um dia de luz. Transformarei vossas festas em luto e todos os vossos cantos em lamentação; colocarei um saco em todos os rins e em cada cabeça uma tonsura. Eu a colocarei como em luto pelo filho único, seu fim será como um dia de amargura” (Am 8,9-10); “Se penetrarem no Xeol, lá minha mão os prenderá” (Am 9,2). Com relação ao fato do véu do templo ter se rasgado, trata-se de um simbolismo. “Este véu é um símbolo, era a separação que afastava os pagãos da religião judaica. Trata-se provavelmente do véu do Santo, de preferência ao Santo dos Santos; este véu ocultava o interior do Templo às pessoas do átrio, aos judeus, mas sobretudo aos pagãos. Este véu protege de maneira exclusiva o segredo da religião, a intimidade de Javé no interior do templo. Rasgar o véu, é suprimir o segredo e a exclusividade. O culto judaico deixa de ser o privilégio de um povo, seu acesso é aberto a todos, mesmo os gentios. Eis o sentido profundo desse fenômeno” (BROWN, 1998, p. 230).

Um comentário:

Unknown disse...

Poderia citar as referências bibliográficas?