"VOCAÇÃO DE ABRAÃO"



O capítulo 12 do livro do Gênesis traz um relato sobre a vocação de Abraão. Vocação é um chamado de Deus para a realização de uma missão17. Abraão é um vocacionado de Deus. Escuta a sua voz que chama:
"Parte da tua terra, da tua família e da casa de teus pais para a terra que eu te mostrarei" (Gn 12, 1).
A vocação é uma proposta de Deus ao homem, o qual é livre para acolher ou rejeitar. Deus revela para Abraão o itinerário que ele deve percorrer. Porém, Abraão tem que fazer seu próprio caminho, discernindo seu próprio destino.
Como Abraão sabia que era Deus que o chamava e que não se tratava de uma iniciativa pessoal? A vocação é sempre algo repleto de mistério. Se perguntarmos a uma religiosa porque deixou todas as comodidades da família para assumir uma vida de pobreza a ter de estar com os empobrecidos da África, a resposta será clara: “Sinto-me chamada por Deus. Não sei explicar, mas realizar esta missão é algo que me deixa feliz”. Assim também, não há explicação para os desígnios de Deus. A vocação não se explica, é mistério. Podemos apenas contemplá-la na experiência da vida.
Abraão é um homem de fé. Ele não precisava antes compreender para crer que era Deus que o chamava. Não exige provas para lançar-se confiantemente nas mãos de Deus, mas simplesmente deposita toda a sua esperança no Deus que se revela, mesmo sem ter muita clareza do seu futuro.
A tomada de consciência de Abrão de que era Deus que o chamava não se deu de forma instantânea, miraculosa, não é fruto do acaso. Há todo um processo contínuo da descoberta pessoal de Abarão, o que ocorreu após uma longa caminhada de amadurecimento de sua própria fé. Quando ainda vivia em sua terra, Ur, na Caldéia, já tinha dado um rumo à sua vida casando-se com Sara (Gn 11, 30). Abraão tinha seus próprios planos, mesmo que tivesse ainda descoberto a proposta de Deus para sua vida. Somente em Harã18, na atual Síria, é que ele vai descobrindo a sua missão como um chamado de Deus. Harã é o chão onde se dá o grande acontecimento: o encontro de Abraão com Deus. Encontro transformador. Aliás, todo o encontro é transformador. O encontro é carregado de uma experiência de mudança, deixa marcas profundas. A partir daquele encontro, Abraão nunca mais foi o mesmo. O seu contato com o divino fez dele um homem novo, deixando algo de si para acolher a novidade do projeto de Deus. O encontro torna-se o espaço propício da dádiva, da alegria, da gratidão, do compromisso.
Antes, porém, Abraão era mais um que, como seu pai, vivenciava uma experiência religiosa centrada no serviço aos falsos deuses (Js 24, 2-3).
Abraão traz consigo crenças herdadas das tradições familiares. Foi necessário que houvesse um rompimento para se chegar a uma mudança de sua própria fé, como faz memória o livro de Judite, escrito provavelmente no século II a.C:
"Esse povo é descendente de caldeus. Habitavam primeiro na Mesopotâmia, porque não queriam seguir os deuses de seus pais, que estavam na terra dos caldeus. Abandonaram o caminho de seus ancestrais e adoraram o Deus do céu, o Deus que eles conheceram. Foram expulsos para longe da face de seus deuses, e então refugiaram-se na Mesopotâmia, onde habitaram por muitos dias. Seu Deus lhes disse para sair do lugar de sua moradia e se dirigirem para aterra de Canaã" (5, 6-8).
A experiência de Deus na vida de Abraão foi decisiva. Sua proposta exige que ele deixe para traz muitas coisas. Abrão é convidado a abandonar pátria, família, para se comprometer com a missão que Deus lhe confiava. Abraão tem que romper com os laços afetivos. Trata-se de uma experiência exodal que tem seu ponto de partida a começar de si mesmo. Somente os que se dispõem a esvaziar-se de si mesmos estão prontos para partir. Toda opção exige renúncia, pois o projeto de Deus é diferente do nosso.
A grandeza de Abraão consiste, sobretudo, na sua disponibilidade em torna-se instrumento de Deus. Ele deixa-se conduzir por Deus, trocando o certo pelo incerto, o conhecido pelo desconhecido, a segurança pela insegurança.
Abraão quando foi chamado tinha 75 anos. Deus quando convoca não leva em conta a idade. Todo tempo é propício para fazer uma experiência com Ele. Seu tempo é diferente do nosso. O tempo de Deus não se limita aos esquemas mentais, cálculos, (krónos). O tempo dele é o Kairós. O tempo de Deus é o hoje, por isso é preciso estar atento ao seu chamado para dar-lhe uma resposta:
"Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações como no tempo da exasperação" (Hb 3, 15).
Deus nos surpreende. Chega ao nosso encontro na hora, no lugar em que menos esperamos. Assim aconteceu com Abraão. Assim pode acontecer em relação a cada um de nós.
NOTAS:
17 Vocação: do latim vocare = chamar.

18 Estêvão, primeiro mártir da Igreja primitiva, no seu discurso, faz uma retrospectiva da história de Israel situando o chamado de Abraão ainda na Mesopotâmia e não em Harã (At. 7, 3). Estêvão toma como referência uma tradição extra bíblica. Em Gênesis 15, 7 está escrito: ...Sou eu o Senhor que te fez sair de Ur dos Caldeus para dar-te esta terra em posse. Neste versículo deixa também transparecer que desde do início era Deus quem conduzia os passos de Abraão.

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