A CRUZ NA HISTÓRIA DA IGREJA


Durante o percurso histórico da Igreja, a cruz foi compreendida de maneiras diversas. Em torno da cruz, se estabeleceu um culto de veneração e se traçou um itinerário de santidade. Dos primeiros séculos da Igreja até a contemporaneidade ocorreu um desenvolvimento da espiritualidade da cruz.

A cruz nos primeiros séculos da história da Igreja

A pregação sobre a cruz de Cristo foi esquecida no período primitivo da Igreja devido às heresias cristológicas que questionavam acerca da divindade de Jesus. Diante desse contexto de dúvidas, deu-se mais ênfase aos aspectos que demonstravam a glória e a majestade de Cristo. O Cristo da Kenosis (esvaziamento) se oculta diante da evidência do Cristo Pantokrator (todo-poderoso) (AHERNS, 1993).

Nos três primeiros séculos, se desenvolveu toda uma reflexão sobre o significado da cruz na obra da salvação. A partir dos textos do Antigo Testamento e de sua interpretação alegórica, a cruz foi comparada à árvore do paraíso, com a arca de Noé (cf. 1Pd 3,18-22), com a lenha do sacrifício de Isac, com a escada de Jacó (cf. Jo 1,51) com a serpente de bronze erguida por Moisés no deserto (cf. Jo 3,14) e com a vara de Moisés.

Neste período, temas como: sofrimento de Cristo, humanidade de Cristo e sua contribuição para a santificação, imitação da Paixão vieram à tona pelos Padres da Igreja, entre eles: Santo Inácio de Antioquia (117), São Policarpo (165), Santo Irineu (197) e Tertuliano (220) (AHERNS, 1993).

Nos séculos IV e V, com a proclamação do Edito de Milão (313) os cristãos adquirem do imperador Constantino a permissão para praticarem sua fé de forma livre. A cruz de Cristo, que então fora descoberta neste período, tornou-se o símbolo oficial e objeto de veneração pública. A veneração da cruz motivava as pessoas a praticarem obras penitenciais de modo a conquistar o mundo futuro.

O século IV foi marcado pelo início da devoção popular à cruz. Vejamos o que atestam os estudos sobre essa época:

A devoção à cruz passou a ocupar lugar importante na espiritualidade cristã do séc. IV, conforme se deduz do desenvolvimento de uma liturgia em sua honra e da popularidade das peregrinações ao Gólgota e ao Santo Sepulcro. Partes da cruz, transferidas para os países ocidentais, deram origem as manifestações populares de fé em seu poder de livrar os cristãos de qualquer tipo de mal (AHERNS, 1993, p. 253).

O desenvolvimento teórico da espiritualidade da cruz encontra-se nas homilias dos Padres da Igreja, como: São João Crisóstomo que exaltava o poder purificador do sangue de Cristo (407) e Santo Agostinho (430) (AHERNS, 1993).

A cruz na Idade Média

No período medieval, marcado pelas mais diversas superstições, a espiritualidade da cruz encontra o seu desenvolvimento.

Cruz e vida cristã na Idade Média aparecem correlacionadas. A vida cristã da Idade Média estava imbuída pela espiritualidade da cruz. As tradições monásticas com suas práticas ascéticas rigorosas enfatizaram a importância de uma vida crucificada com Cristo, abandonando assim os prazeres do mundo. O monge trazia em suas vestes sinais que lembravam a Paixão de Cristo.

É importante destacar que havia uma diferença entre o modo como se deu o aprofundamento da espiritualidade da cruz na vida monástica e na devoção popular. Esta estava muito mais preocupada com cruz enquanto objeto, do que com o seu mistério.

Na piedade popular multiplicam-se e em outros lugares erigem-se cruzes de pedra, um pouco por toda parte, ao mesmo tempo que se emprega sempre uma reprodução da cruz para assegurar a bênção de Deus para toda espécie de necessidades humanas; por exemplo, para curar os enfermos, para obter a fertilidade da terra e para encontrar algo perdido (AHERNS, 1993, p. 253).

A devoção popular deu um caráter supersticioso a cruz. O poder da cruz era mais evidenciado do que o seguimento do Cristo Crucificado. A devoção popular a cruz foi tão intensa no período medieval que culminou com o reconhecimento oficial da Igreja, quando o papa Sérgio I instituiu a Festa da Exaltação da Santa Cruz (AHERNS, 1993).

Nos séculos XII ao XV, último período da Idade Média, ocorreu uma evolução acerca da doutrina da cruz. Grandes contribuições deram os escritores cristãos: São Gregório Mágno (604), Santo Anselmo (1109), Guilherme de Saint-Thierry (1148), Santo Tomás de Aquino (1274), São Bernardo (1153), são Boaventura (1274), Santa Gertrudes (1302) (AHERNS, 1993).

A evolução da espiritualidade da cruz se deu também nas ordens religiosas. Os franciscanos foram os grandes propagadores da piedade popular em torno da cruz. Os franciscanos não só traziam no hábito, em forma de cruz, mas em seu modo de viver as marcas da Paixão. Foram os franciscanos contribuíram com a propagação da devoção a cruz pelos vários meios: pregação da Paixão de Cristo, criação de hinos, ladainhas, no erguimento de crucifixos e na instituição da via crucis (Via-Sacra) (AHERNS, 1993).

Os temas da compaixão por Cristo padecente e sofredor, da imitação de suas virtudes, da confiança em seus méritos, da intercessão para obter sua ajuda misericordiosa, se baseavam na fé firme na humanidade real e na divindade consubstancial do Filho de Deus encarnado (AHERNS, 1993, p. 254).

A devoção a cruz na Idade Média foi eficaz na medida em que ajudou as pessoas a suportarem os seus sofrimentos e permitiu o florescimento de vidas santas autênticas, que procuram viver a imitação do Cristo Crucificado[1].

A cruz na Idade Moderna

A pós o Concílio de Trento (1545-1563), a espiritualidade cristã continuou a realçar a Paixão de Cristo. Neste período, grande contribuição deu a escola espanhola. Santos como: Inácio de Loyola (1556), Teresa D’ávila (1582) e João da Cruz (1591) desenvolveram uma ampla reflexão acerca importância da meditação da Paixão de Cristo e de sua imitação (AHERNS, 1993).

Os santos acima mencionados tinham uma grande devoção a cruz. Conforme Aherns (1993, p. 254) “os três consideraram a meditação da paixão de Cristo como elemento necessário na luta para alcançar a santidade cristã”.

Na modernidade, a devoção a cruz aumentou. Pregadores famosos como Luís de Monfort (1716), São Leonardo de Porto Maurício (1751), São Paulo da Cruz (1775), fundador da congregação dos Passionistas, tinham como um dos temas principais de seus sermões a Paixão de Cristo. Grandes propagadores da Paixão de Cristo foram as várias famílias religiosas: Jesuítas, Franciscanos (observantes e Capuchinhos) e os lazaristas (AHERNS, 1993).

A cruz na contemporaneidade

A espiritualidade da cruz até a metade do século XX ainda era compreendida e vivenciada segundo o modelo dos períodos anteriores. As pregações populares contribuíram para que se mantivesse viva a devoção a cruz e o amor a Paixão de Cristo. Santos como o frade Capuchinho, Pio de Piutrechina, Gema Galgani da congregação dos Passionistas e Teresa Neumann, chamaram a atenção do mundo por receberem em seus corpos os estigmas da Paixão de Cristo.

A espiritualidade da cruz a partir de meados do século XX adquire uma nova compreensão. Práticas da devoção popular como a Via Sacra, a contemplação dos mistérios dolorosos do Rosário não são tão evidenciados como antes.

A mudança da espiritualidade da cruz se dá por várias razões. Para alguns teólogos, ela ocorreu devido a contribuição do Concílio Vaticano II (1962-1964) que procurou evidenciar muito mais a importância da Eucaristia e da liturgia em relação as práticas devocionais (AHERNS, 1993).

O esfriamento de uma espiritualidade da cruz ao modo da devoção popular se deu por razões teológicas e sociopsicológicas. No campo teológico, começou a se evidenciar mais a figura de Cristo Ressuscitado por meio dos estudos bíblicos e teológicos. Essa evidenciação demasiada a espiritualidade do Cristo Ressuscitado trouxe conseqüências. Afirma Aherns:

Infelizmente, porém, esta nova ênfase teve como resultado obscurecer a idêntica importância da paixão de Cristo como fonte da redenção e modelo de vida cristã. Conseqüentemente, muitos passaram por alto o fato que, por mais que a vida um dia venha a ser iluminada no céu pela sabedoria da ressurreição, é preciso vivê-la aqui na terra como a sabedoria da cruz (AHERNS, 1993, p. 255).

Sobre as razões sociopsicológicas que levaram a considerar a Paixão de Cristo e a espiritualidade da cruz, segundo Aherns (1993), são: desenvolvimento de uma nova consciência social que permitiu aos homens o conhecimento de suas condições desumanas; as conseqüências das guerras mundiais; o aparecimento do terceiro mundo, a publicação do sofrimento dos oprimidos; os ensinamentos trazidos pelo Vaticano II.

O empenho para remediar estas necessidades se converteu, para muitos, em compromisso social que os absorveu completamente e os afastou das formas passadas de espiritualidade, consideradas no presente como demasiado centralizadas em si mesmas e indiferentes às necessidades do mundo. Uma espécie de miopia induziu a considerar a paixão de Cristo e a espiritualidade da cruz como fatores irrelevantes diante das angustiantes necessidades humanas que requerem remédio urgente (AHERNS, 1993, p. 255).

Na contemporaneidade, a redescoberta da Paixão de Cristo na espiritualidade cristã, foi feita por um grupo de teólogos alemães que procuram enfocar que “a cruz é a manifestação eminente de Deus e revela o modo como se pode tornar operante a ressurreição na vida terrena do cristão” (AHERNS, 1993, p. 256).

O enfoque teológico procura demonstrar que não há separação entre a Paixão e a Ressurreição. “Enquanto houver homens nesta terra, Cristo ressuscitado terá que torná-los capazes de enfrentar as lutas e batalhas da vida com a sabedoria da cruz, que orienta igualmente sua vida terrena” (AHERNS, 1993, p. 256).


[1] Foi neste período que surgiu a famosa obra Imitação de Cristo, escrita por um autor desconhecido. Essa obra tornou-se um dos guias espirituais mais propagados. Muitos foram os homens e mulheres que galgaram os degraus da santidade na leitura e vivência dos ensinamentos contidos na Imitação de Cristo.

Nenhum comentário: