"Crentes e não-crentes: Ética com Deus e sem Deus"


Desde as civilizações antigas até as sociedades modernas e contemporâneas, o pensamento religioso tem sido alvo de acolhimento e rejeição. A história da humanidade sempre foi permeada por uma luta dicotômica entre os que crêem e os que não crêem: judeus e gregos (Idade Antiga), cristãos e hereges (Idade Média), crentes e ateus (Idade Moderna).
Nos tempos hodiernos, configurado por uma pluralidade de pensamentos e crenças, esse embate tem se tornado cada vez mais instigante, principalmente numa sociedade que se caracteriza por um laicismo e descrença na Tradição religiosa, que tem como base de sustentação a Revelação.
Com a proclamação da “morte de Deus” na modernidade, ou seja, com a rejeição de uma força regulamentadora dos atos humanos, o problema religioso aparece na contemporaneidade não só entre os que crêem: católicos, protestantes e Ortodoxos, mas principalmente entre os que se negam a acreditar num ser transcendente, denominado de Deus.
Uma batalha entre religiosos e anti-religiosos se expandiu de forma ampla que é necessário se falar hoje em um diálogo inter-religioso. É preciso buscar um ponto comum que vincule os que crêem, no transcendente, com aqueles que crêem numa realidade, apenas, imanente.
Nesse amplo espaço que é abrange o Universo religioso é preciso com emergência uma abertura para se aceitar as diferenças e com elas dialogar. Não se concebe mais, atualmente, uma experiência religiosa detentora de uma verdade absoluta da qual se queira impor ao outro. As circunstâncias atuais nos interpelam para a comunhão e o respeito. Trata-se de buscar aquilo que une e não o que separa.
O diálogo do Cardial Carlo Maria Martini e o filósofo Umberto Eco, na Obra Os que crêem os que não crêem tem como objetivo encontrar elementos comuns entre o universo católico e o universo leigo num contexto mundial de grandes e rápidas mudanças. Nessa obra, a voz da Igreja, representada por Martini e a voz do leigo, representada por Umberto, ecoam como uma reflexão madura, com o desejo de que se construa uma sociedade alternativa movida pela esperança, por princípios éticos de respeito e preservação da vida.
A temática que articula o debate engloba questões ligadas à existência de um Ser divino; a esfera ética e respeito pelo outro; ao aborto; manifestações apocalípticas no fim do segundo milênio e sobre a compreensão de esperança comum a crentes e não crentes.
O que crêem os que não crêem? Essa é a pergunta fundamental que media o debate, ou na expressão de Umberto, essa “troca de reflexões entre homens livres” (ECO, 1999, p.12).
Parece que crentes e não-crentes não são tão díspares, principalmente quando ambos são movidos pela mesma esperança, aspiram um mesmo ideal: a preservação da vida do planeta e dos homens, que vivem em situação de risco, diante dos desastrosos atos de agressão.
Esses danosos crimes contra a natureza se enquadram nas realidades apocalípticas que se manifestam hoje de várias formas: multiplicação de depósitos nucleares, desaparecimento da Amazônia, alastramento da fome em continentes inteiros, destruição do solo, modificação dos climas, avanço da engenharia genética que construirá “replicantes”, etc. Tudo isso são sinais, para Umberto, de uma vivência dos terrores do fim, caracterizado ainda, pelo fim das ideologias e da solidariedade, diante de um “consumismo irresponsável” (ECO, 1999, p. 14-15).
Esse pensamento do fim dos tempos para Umberto tem sido objeto de apropriação mais do mundo laical do que mundo cristão. Afirma Eco:
“Arisco dizer que o pensamento do fim dos tempos é, hoje, mais típico do mundo laico do que do mundo cristão. Ou seja, o mundo cristão faz dele objeto de meditação, mas se move como se fosse junto projetá-lo em uma dimensão que não se mede com calendários; o mundo laico finge ignorá-lo, mas é substancialmente obcecado por ele” (ECO, 1999, p.15).
Apesar de tal desastroso quadro, para Umberto é preciso acreditar que há ainda uma esperança. Porém, questiona: “Há uma noção de esperança e de responsabilidade em relação ao amanhã que pode ser comum a crentes e não-crentes?” (ECO, 1999, p. 18).
Refletindo essas idéias, Martine acredita que as expectativas apocalípticas se constituem em uma esperança. Afirma Martini: “Nesse sentido, é preciso dizer que cada apocalipse carrega uma grande carga utópica, uma grande reserva de esperança, combinada, porém, com um conformismo desolado em relação ao presente” (ECO, 1999, p. 21).
Quanto à questão levantada por Eco, se há uma noção de esperança entre crentes e não-crentes, responde Martini: “Ela deve existir de alguma maneira prática, pois é possível ver crentes e não crentes vivendo o presente, dando-lhe sentido e empenhando-se com responsabilidade” (MARTINI, 1999, p. 23).
Por mais que a compreensão do mundo seja vista e interpretada a partir de perspectivas diferentes, crentes e não- crentes estão de acordo quando se trata da defesa da vida. “A bandeira da vida, quando trêmula, não pode senão comover todos os espíritos” (ECO, 1999, p. 29).
É no campo da ética que é possível encontrar o consenso entre os que crêem e os que não crêem. Quando o que está em jogo é a existência humana e seu estar no mundo de forma digna, permite que os crentes e não-crentes superem suas particularidades e se abram ao diálogo, comunhão e participação na luta pela construção de uma nova terra.

Nenhum comentário: